Planeta dos Humanos – «Estou numa estranha posição»: novas fontes de energia = menos disponibilidade energética

«The sharing of false hope is disempowering»
Chris Hedges

1. Um filme polémico?

Precisamos de conversar sobre este filme, que é intensamente pessoal e se afirma, pela voz do seu realizador-narrador, «numa estranha posição», o que tem vindo a ser interpretado como uma notória «incorrecção», segundo muitos dos que exigem agora que seja retirado de exibição. Aparentemente, ele integra uma já longa sequência de filmes ambientais de origem norte-americana, cujo paradigma contemporâneo foi estabelecido pelo An Inconvenient Truth (2009), de Al Gore. Também os filmes de Gore nos falavam na primeira pessoa, mas era como se o fizessem a partir da sala de estar com 120m2 do próprio Gore, e o estivéssemos a ver por meio de um projector de alta resolução. Mostravam coisas importantes, mas a urgência assim exibida aparecia num ambiente cromado e luxuoso, com o seu quê de desprendimento yankee. Por sua vez, o filme baseado no livro-choque de Naomi Klein, This Changes Everything (2015), em torno do qual organizei a seu tempo uma sessão pública no Porto, modificava um pouco o cenário: estávamos agora no meio dos activistas que percorrem as sete partes do mundo denunciando o ocidentalismo e trazendo aos povos a evidência de um novo paradigma energético conduzido pela ala esquerda dos Democratas norte-americanos. O Planeta dos Humanos introduz uma ruptura perturbadora nessa linhagem: por um lado, coloca-se como crítica radical das bases do problema, por outro, fá-lo através do que aparenta ser uma dissidência pessoal perante o ambientalismo. Este posicionamento configura, ao mesmo tempo, a força e a fraqueza do filme.

Diante de todo este cosmopolitismo, o filme de Jeff Gibbs parece reduzido a uma escala muito mais diminuta, quase exclusivamente americana. Parece um filme menor, pouco rigoroso, ressentido mesmo. E talvez seja tudo isso. O guião do filme sofreu, claramente, com um período de gestação demasiado longo, causa da sedimentação de algumas desilusões aí exibidas que não terão sido – voluntária ou involuntariamente – compreendidas. Mas o que aqui queremos sublinhar é a sua importância extraordinária no momento e contexto actuais. Este é um filme à beira do fim, uma espécie de policial negro transposto para o meio dos novos big green business e dos meios ambientalistas «normalizados» que fazem o jogo do sistema. É uma narrativa que parece viver do confronto, e tanto pode ser injusta para figuras como Bill McKibben como ocasião para prestar tributo a uma personagem como Vandana Shiva. O que parece demonstrar que o verdadeiro objecto da crítica do filme não serão as energias renováveis em si mesmas, mas antes o facto de estas se apresentarem cada vez mais como extensões da sociedade técnico-industrial que nos trouxe aqui. E que a debilidade que alguns ambientalistas apresentam não está no seu apoio à transição para as renováveis, mas antes na sua aquiescência à plena integração destas num alavancamento geoestratégico, financeiro e industrial que não é propriamente diferente do que já era implementado pela indústria fóssil. Mas passam aqui algumas personagens diferentes: o espectador atento não deixará de reparar na presença de uma figura notável, bem representativa do pensamento decrescentista nos EUA, como Richard Heinberg (The End of Growth, 2011). 

Este e outros dos intervenientes vão chamando a nossa atenção para o que podemos designar como um ambientalismo existencialista, que parece ser a fonte essencial do filme: aceitando que o mundo presente se apaga em torno de nós, podemos ainda assim imaginar a viagem da nossa posição, readquirindo, por meio desse exercício, um equilíbrio que advém do nosso confronto com a verdade.

Sim, o filme Planet of Humans está a ser violentamente atacado e importa perceber porquê. O filme está longe de ser perfeito, por vezes será mesmo injusto, mas não nos parece que seja um filme fundamentalmente equivocado quanto ao essencial: estamos todos numa situação em que o perigo vem da convergência de diversos factores e importa mais reconhecê-lo do que apostar tudo numa esperança tecnologicamente dirigida, por mais promissora que ela seja. E é disso mesmo que se trata num plano mais óbvio do filme: as energias renováveis são indispensáveis mas não estão à altura de tudo aquilo que alguns prometem em nome delas. Nada está. Se o filme fosse mais equilibrado, falar-nos-ia mais longamente sobre os possíveis usos realistas e comunitários do solar e do eólico. E depois mostrar-nos-ia o que nele se vê e parece chocar tanta gente: que a introdução maciça dessas tecnologias não chega para sustentar o modelo de consumo energético que temos hoje e que está solidamente apoiado nas fontes carbónicas. Mas o filme prefere focar-se naquilo que quase ninguém está a dizer: que temos não só de rejeitar o velho mundo mas também de inventar o novo mundo de uma forma muito mais completa do que nos dizem os que promovem a ideia de uma transição sem perturbações. O que falta ao filme é essa multidimensionalidade alternativa.


2. O contexto do filme

O facto é que não falamos o suficiente sobre o mundo de energias renováveis que queremos e aquele que podemos vir a ter. Preferimos acreditar que há uma bondade inerente na sua produção industrial e na sua instalação em todos os recantos da Terra. E, o que é pior, não queremos examinar os custos ambientais e sociais que essas tecnologias trazem, não por serem renováveis, mas por obedecerem às lógicas de crescimento que, embora tentando divergir das que têm na sua base as tecnologias carbónicas, acabam por convergir na defesa de privilégios adquiridos. A questão chave reside nas lógicas de escala aplicadas às energias eólica e solar. Estas escalas desmesuradas rimam com a China, o actor decisivo das renováveis de um ponto de vista industrial, quer queiramos quer não.

Não temos de – nem queremos – imitar o agressivo «debate» norte-americano. Mas temos de compreendê-lo. Pela simples razão de que esse debate esconde uma guerra profundamente incrustada no capitalismo, tal como ela se exacerba actualmente nos EUA, mais do que em qualquer outro lugar. Falo do conflito entre duas visões estratégicas que estão agora na sua bifurcação decisiva: de um lado, o velho modelo industrial carbónico, do outro, o modelo cibercapitalista que faz das energias renováveis uma espécie de caução moral dos seus processos. Vemos esta guerra atravessar hoje todas as camadas das elites americanas: os isolacionistas e os globalizadores, os extractivistas e os recicladores, os corporativistas e os milenaristas tecnológicos, mas também o dólar ao serviço da indústria versus o dólar ao serviço da finança. Na verdade, todos convergem em torno da ideia cada vez mais mirífica de um relançamento do crescimento económico e financeiro, mas vêem esses objectivos através de uma reconstrução estrutural basicamente divergente. Lamentavelmente, hoje não é possível perceber o contexto da regulação ambiental se não compreendermos a que ponto os modelos tradicionais da expansão económica foram esmagados contra o tecto da sua expansão.

O facto é que não estamos a fazer as contas integrais nem as projecções necessárias, não as relativas ao mundo tal como ele é hoje, bem conhecido e que está a desaparecer neste momento, mas ao mundo que poderemos ter nas próximas décadas se quisermos sobreviver às alterações climáticas e ao colapso da bioesfera. Aqueles que conhecem os factos sabem que a energia primária disponível se mantém obstinadamente nos cerca de 80% de origem fóssil, e que a parte dos progressos das renováveis é acompanhada por um crescimento daquelas. Esta proporção pode ser explicada pela equação – que não é desmentida há mais de duzentos anos – entre energia e crescimento. Contudo, temos assistido nas últimas semanas a uma guerra estatística contra o Planeta dos Humanos em grande medida baseada nas virtudes das renováveis, não à luz dessa equação, que assim é de novo ocultada, mas à luz de uma espécie de valor da mutação tecnológica que o filme é acusado de querer ocultar. Há nessa insistência nos novo materiais e numa acrescida funcionalidade dos dispositivos um traço de pensamento mágico que deveria inquietar-nos e que parece abundar nas chamadas políticas de transição energética: estas esquecem que a transição societal está necessariamente divorciada de muitos dos recursos hoje disponíveis.

O argumento fundamental dos críticos vindos do Green New Deal diz que o filme ignora propositadamente os progressos feitos pelas tecnologias renováveis: descida constante dos custos, maior rentabilidade, maior capacidade de armazenamento, etc. O seu argumento é portanto um puro argumento tecnológico que desiste de ser político e, em última análise, carece de um olhar sistémico.

Alguém disse que o filme não se atreve a atingir Greta Thunberg. Parece-me muito sintomático que as coisas possam estar a ser assim colocadas. Não podemos continuar a ter as alterações climáticas como epicentro de toda a compreensão ambiental. Elas são evidentemente uma parte essencial desta, mas deveriam estar aí como macroscopia planetária do que se desdobra em colapsos sucessivos e interligados. Anda aí implícita a ideia de que o filme desviaria as atenções das alterações climáticas ou, pior, estaria a dar uma ajuda providencial à indústria do petróleo. Este equívoco pode ser reconstituído por meio daquela cronologia do cinema ambiental nos EUA que evocámos acima: se, em Al Gore, a atenção se focaliza no tsunami das alterações climáticas, que se resolve por tsunami tecnológico; em Naomi Klein, as alterações climáticas são apresentadas como a oportunidade democrática do nosso tempo se se apresentarem como reaquisição do controlo. Planeta dos Humanos, ao invés, não traz duplicações ou resoluções do comando. Terá, em si, desdobramentos e parece ser nestes que aposta. A lógica do colapso que vivemos não admitirá provavelmente transferências de poder ou novas concentrações de meios.

A menor disponibilidade energética das renováveis não pode ser um argumento a favor das fontes carbónicas. O filme, aliás, não o sustenta, ao contrário do que tem sido dito. Por outro lado, a menor eficácia energética das fontes renováveis – que se apresenta inevitável, seja qual for a inovação aí incorporada – não deve constituir uma debilidade das renováveis: ao contrário, ela deve ser um argumento decisivo para a entrada num mundo de renováveis. E é aqui que entra o decrescimento: um mundo com menos disponibilidade energética é um mundo com mais decisões possíveis, desde que estas estejam disseminadas em toda a cadeia da vida social e económica. Uma menor disponibilidade energética é indicativa, não de uma sociedade onde tudo é permitido, mas antes de uma sociedade onde tudo seja possível. Um possível formado pelo conhecimento dos seus limites. Essa é a verdadeira transição.

Como escreveu Milan Kundera, «aqueles a quem a ideia de progresso fascina não se dão conta de que toda a marcha em frente vai tornando, ao mesmo tempo, o fim mais próximo e que eufóricas palavras de ordem como “mais longe” e “avante” nos dão a ouvir a voz lasciva da morte que incita a que nos apressemos.»

Jorge Leandro Rosa / Rede DC