Recuperar a comunidade e a sua profilaxia (reflexões decrescentistas durante a pandemia – 1)

Parar os motores e as máquinas: eis o cenário que, até há algumas semanas, era necessário começar a preparar mas que se apresentava altamente improvável. Agora, ele parece-nos irreal por se ter tornado tão abruptamente verificável. Como explicar essa contradição? Em vez de nos limitarmos à esfera dos acontecimentos, é necessária uma observação mais incisiva das diversas oportunidades mas também dos oportunismos em jogo. O desastre não eclodiu com a Covid-19: desenrolava-se já por todo o lado. A pandemia, embora trágica, não traz, vista na grande escala, uma nova situação, antes agudiza e introduz variáveis naquela que continua a desenrolar-se.

Estamos cientes de que pouco mudou ainda no plano da consciência: para muitos daqueles que continuam a viver no mundo anterior à Covid-19, o reino dos motores e das máquinas não caducou, apenas entrou em stand by. É certo que alguns de nós afirmavam há muito a necessidade, não de tudo parar abruptamente, mas de começar urgentemente a reduzir a mobilidade e o raio de acção de uma parte desses sistemas. Precisávamos de desacelerar, reduzir e modificar as escalas do que os humanos fazem neste planeta. E também sabíamos que uma grave e súbita paragem de tudo se apresentava, de dia para dia, mais provável, precisamente porque a própria complexidade dos movimentos interdependentes a convocava. Por meio da pandemia, pudemos verificar que a sociedade hiper-industrial em que vivíamos, embora dotada de inúmeros sistemas de segurança, pouco ou nada investira na prevenção de disrupções como esta. A razão é clara: enquanto prevenir seriamente acontecimentos pandémicos implicava pôr em questão a escala global dos sistemas de circulação e capitalização, prevenir a contestação política, social e económica parecia consentâneo com a manutenção dos fluxos que alimentam o crescimento. Muitos já haviam observado a normalização de uma estranha convergência entre Estados democráticos e Estados autocráticos, cada vez mais próximos na substituição da cidadania pelo consumo.

Mas na verdade os movimentos que agora deixámos de ver à nossa volta – dos corpos humanos, das indústrias, dos automóveis e dos aviões – estão a ser substituído por outros movimentos. De diferentes maneiras e com possibilidades divergentes. Por um lado, foram já observados movimentos de animais que quase haviam perdido os seus espaços vitais e que têm vindo a alargar o perímetro destes, chegando agora até onde, semanas antes, só os humanos e as máquinas tinham direito a permanecer. É um sinal frágil de uma possibilidade também ela frágil: a de uma nova redistribuição dos espaços dos diferentes seres vivos. Nele reside o verdadeiro sentido político dos avisos que têm sido lançados sobre a transmissão viral entre espécies selvagens e humanos, uma advertência que não é relativa à intrínseca ameaça de certos micro-organismos, mas antes à ameaça colocada por uma natureza demasiado constrangida e explorada. Por outro lado, não podemos esquecer que outras entidades têm intensificado os seus movimentos: falo das deslocações de electrões e de ondas electromagnéticas nos nossos dispositivos e entre eles: podemos ver nestes movimentos, que se têm vindo a intensificar, como se viessem substituir a mobilidade dos nossos corpos e máquinas, o sinal de um projecto político que está a ser reconstituído em torno do high-tech e do higienismo, agora nas suas versões do século XXI.

Tem sido evidente nestas semanas que a mobilização geral continuamente estimulada pela sociedade globalizada sofreu um acidente importante. Mas o que é um acidente nestas circunstâncias? Como sabemos, da epistemologia à engenharia, das ciências ambientais à sociologia, a categoria do acidente aparece crescentemente integrada nos dispositivos de prevenção e monitorização dos sistemas complexos. Este «acidente» era facilmente previsível e os epidemiologistas sabiam-no bem. Mas a sociedade da aceleração global – que é intrinsecamente a sociedade do crescimento – não podia integrá-lo numa escala decisiva. Ou não podia ainda integrá-lo. O crescimento não se dá sempre linearmente: tal como a sua linearidade tende, passado algum tempo, a atingir os limites do território, a esgotar as matérias-primas e os pressupostos presentes em algum modelo em particular, assim o crescimento precisa de sofrer «acidentes», quebras de linearidade, para poder ser relançado com base em novos pressupostos crescentistas. Na nossa análise da sociedade de crescimento deveríamos ter sempre presente que esta não é teleológica, não visa um fim particular e constante (o crescimento não é substantivo enquanto fim). Por isso, em cada fase, após cada crise, os fins declarados do crescimento mudam como os cenários no palco de um teatro: um novo modelo de crescimento acompanha sempre uma nova tecnologia, uma nova publicidade disfarçada de informação. Não parece inteiramente credível que as medidas de confinamento – e, portanto, de paragem do circuito de produção/consumo – respondam claramente a um primado da vida sobre a economia. A vida reapareceu nesta crise porque as nossas sociedades ainda não puderam abolir o nexo entre vida, representação e valor.

O maior perigo presente nesta crise não é o vírus nem a recessão que se lhe seguirá mas antes a oportunidade (no sentido de «oportunista») aqui oferecida para um reset do sistema do crescimento, que precisará de adquirir novas formas. A propagação desta epidemia condensa a propagação da esfera do Anthropos. Daí que a linguagem militar empregue seja, não só adequada ao que está a ser instalado, mas pouco inocente quanto aos seus «efeitos secundários»: ela visa um aparelhamento ainda mais omnipresente dos sistemas de monitorização, que já se disseminavam a passos largos e que agora, com a ajuda poderosa do novo higienismo, poucas barreiras encontrará na sua expansão.

Inversamente, o grande benefício que pode advir desta crise não é a escalada dos sistemas sanitários ou o desenvolvimento apregoado de novas vacinas ou da medicina molecular, mas antes uma generalização da compreensão dos limites do crescimento. O pensamento reflexivo é a melhor profilaxia ao nosso alcance: não estando apenas orientado para a escala das relações de causa e efeito, ele permite-nos interrogar as mudanças de escala, onde frequentemente se encontram as soluções criativas. Mas se quisermos ainda colocar o problema na sua formulação causal, diremos desde logo que, ao decrescermos de forma concertada, as próprias condições da propagação viral se encontrariam diminuídas. Decorre uma «urgência sanitária», decerto. Mas a urgência deveria abrir-se ao pensamento, tanto mais que esta urgência surge já como desdobramento de outras urgências e que urge pôr fim a este entrelaçamento de urgências a que o crescimento nos trouxe. Se não o pensarmos, o sistema do crescimento pensará sempre por nós e o seu bem profiláctico será apenas uma profilaxia crescentista, necessariamente submetida ao encadeamento dos desastres. Nos próximos meses tornar-se-á claro que decorre também um grande experimento social. Dizem-nos que devemos interromper toda a acção. Não nos dizem, mas está implícito na primeira mensagem, que devemos também interromper toda a reflexão. Não é porque nos «recolhemos» em massa, mas antes por esse confinamento ser reduzido a uma «espera» que a experiência pode prosseguir e alargar-se: ela visa o aparelhamento e a sustentabilidade das sociedades a partir da «distância social», nova fórmula da distância antropológica a que a espécie se vem crescentemente moldando na sua marcha civilizacional.

A distância social permite, ainda assim, e se regressarmos aqui a um pensamento histórico, verificar que a medicina reencontra hoje nos gestos mais simples da profilaxia higiénica os elementos decisivos para o seu sucesso. Não se quer rejeitar toda a medicina moderna, mas é essencial retirá-la da posição a que foi remetida na sociedade de crescimento: uma reparação dos desastres da complexidade, totalmente dependente da tecnologia e incapaz de reintegrar a sabedoria vivencial nas suas práticas. Como viver com bactérias e vírus, que têm uma existência biológica infinitamente mais longa do que a nossa? Se não quisermos transformar a profilaxia numa instituição contraprodutiva ao serviço do inumano, poderemos começar agora a mudar de escala nos gestos, nas trocas e nas experiências que partilhamos com os outros. A mudança de escala não é uma perda mas uma recuperação. A «recuperação da saúde», como dizia Ivan Illich, faz-se aqui acompanhar pela recuperação das comunidades biológicas e sociais.

Jorge Leandro Rosa / Rede DC